Se o Brasil deseja manter sua posição de grande fornecedor de grãos e carnes para o planeta e seguir produzindo alimentos para a própria população, não pode prescindir de água e solo em quantidade e qualidade adequadas. Não há mágica. São os recursos naturais que fizeram do país a potência agroexportadora de hoje, e será sua preservação e bom manejo que garantirão um futuro com menos riscos associados, por exemplo, às mudanças globais do clima.
Por questões desse porte, surpreende como regiões estratégicas como o Cerrado permaneçam como alvo histórico de políticas ou descaso públicos responsáveis pelo avanço desregrado da fronteira agropecuária, pela alta fragmentação dos remanescentes do bioma e pelo baixíssimo índice de proteção efetiva do Cerrado, hoje inferior a 3% de sua área. As ameaças decorrentes desse modelo envolvem a eliminação de sistemas naturais ainda capazes de fornecer água a três importantes aqüíferos e seis das oito grandes bacias hidrográficas brasileiras – Amazônica, do Tocantins, Atlântico Norte-Nordeste, do São Francisco, Atlântico Leste e Paraná-Paraguai.
Não à toa o Cerrado é comumente lembrado como “a caixa d´água do Brasil”, águas que geram eletricidade para nove em cada dez brasileiros, que irrigam cultivos com quase sete mil pivôs centrais, concentrados em municípios como Cristalina (GO), Paracatu (MG) e Luiz Eduardo Magalhães (BA), que garantem a sobrevivência do Pantanal, a produção de alimentos pela agricultura familiar e que ganham o mundo na carona das exportações de soja, carne e outras commodities.
Mesmo em ritmo lento, conceitos como o da “pegada hídrica” vêm ganhando espaço no país, desdobrando o consumo de recursos hídricos em água verde (usada na produção de vegetais), água azul (captada diretamente dos rios) e água cinza (para diluir efluentes orgânicos). Grandes empresas têm adotado esses conceitos para reduzir seu consumo de água.
Outros desafios perpassam a agropecuária convencional, ainda grande consumidora desse recurso. Adotar tecnologias inovadoras que reduzam o uso e o desperdício de água, implantar sistemas produtivos baseados na conservação de água e solo e certificar a produção no campo são medidas que não só beneficiarão o meio ambiente, mas manterão abertas as portas do mercado globalizado e manterão dinheiro no bolso dos produtores.
Em se tratando de recursos hídricos, uma das mais importantes legislações em voga é o Código Florestal, criado desde suas primeiras versões para manter florestas e serviços ambientais associados a elas, como o fornecimento de água e a proteção da biodiversidade. Academia, sociedade civil organizada, juristas, produtores rurais e a própria Agência Nacional de Águas (ANA) já demonstraram sua total contrariedade ao temeroso rumo das alterações unilaterais que podem ser impostas a essa lei.
Não é hora de retrocessos. O Brasil deve reconhecer em sua natureza ímpar um bem estratégico para o amanhã. Toda legislação pode ser aperfeiçoada, como no caso do Código Florestal. Todavia, a melhor Ciência disponível na atualidade aponta caminhos bem diferentes dos aventados por setores atrasados do agronegócio. A legislação, por exemplo, pode ter sua execução melhorada e garantida com base em incentivos, inclusive financeiros.
Ao mesmo tempo em que se eleva o calor da discussão em torno da legislação florestal, tramitam vagarosamente no Congresso outros projetos cuja aprovação teria impacto positivo na preservação e bom uso do Cerrado e demais regiões brasileiras.
É o caso da proposta de emenda à constituição que reconheceria o Cerrado e a Caatinga como patrimônios nacionais, aguardando aprovação na Câmara desde 2006, ou da proposta de lei que estimularia produtores a manterem florestas em suas áreas com o pagamento por serviços ambientais, ou ainda a regulação do Artigo 23 da Constituição, disciplinando a cooperação entre União, estados e municípios na proteção do meio ambiente.
E, por que não, a necessária revisão dos índices de produtividade da agropecuária, tema repetidamente prometido a cada novo governo. Hoje há 211 milhões de hectares ocupados por pecuária de baixíssima produtividade, com 1,1 animal por hectare, e mais de 60 milhões de hectares em pastagens degradadas, especialmente no Cerrado e entre esse e a Amazônia.
Aprovar e fazer valer medidas como essas ajudaria o país a dar um rumo mais sustentável à produção no campo, a manter serviços ambientais úteis ao conjunto da sociedade brasileira e a recuperar e manter formações de inestimável valor como o Cerrado, que vem resistindo a cinco décadas de franco desmatamento.
* Michael Becker é coordenador do Programa Cerrado-Pantanal do WWF-Brasil